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quinta-feira, 15 de maio de 2014

Gibis na alfabetização

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Ensino Fundamental
Maio/2014
Sala de aula | Edição 205

Linguagem visual e características lúdicas fazem das histórias em quadrinhos bons instrumentos para a alfabetização, mas nem sempre eles foram bem vistos dentro da escola.

Rodnei Corsini
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Ilustração: Maro Barbosa
As histórias em quadrinhos contribuem para despertar o interesse pela leitura e pela escrita nas crianças e para sistematizar a alfabetização. Como as HQs em geral unem palavra e imagem, elas contemplam tanto alunos que já leem fluentemente quanto os que estão iniciando, pois conseguem deduzir o significado da história observando os desenhos. A curiosidade em saber o que está escrito dentro dos balões cria o gosto pela leitura e, assim, os gibis podem ter grande eficácia nas aulas de alfabetização.

Se hoje essa visão é consagrada entre professores e pesquisadores, nem sempre foi assim. Os quadrinhos usados atualmente em sala de aula eram vistos como concorrentes dos livros de alfabetização, entendidos, portanto, como uma distração prejudicial ao aprendizado. "Os quadrinhos apareceram com mais frequência dentro da escola a partir da metade do século passado. Primeiro, porque quase não existiam. Segundo, porque havia esse preconceito contra eles", diz Maria Angela Barbato Carneiro, professora titular do Departamento de Fundamentos da Educação e coordenadora do Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar da Faculdade de Educação da PUC-SP.

Falta de hábito
Maria Angela acredita que, dentro da escola, os professores ainda usam predominantemente muitos materiais mais tradicionais, como é o caso do livro didático, em detrimento de outros recursos. "Penso que o professor não está habituado com outros procedimentos – como um jornal, uma revista –, e o fato de não estar habituado não lhe traz segurança", diz. Outro ponto que pode inibir a presença das HQs na alfabetização é o entendimento de que os gibis são meros passatempos e, por isso, serem deixados de lado por conta da crença de que eles serão lidos pelas crianças em casa de todo modo.


Lucinea Rezende, professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR), que desenvolve e orienta trabalhos na área de formação de leitores, concorda que ainda que se tenha avançado bastante na direção de usar múltiplas formas de leitura em sala de aula, fugindo do monopólio do livro didático, ainda se está voltado predominantemente para o texto escrito. "Todos os gêneros que empregam outras linguagens entram devagarinho nas salas de aula", diz.

Os benefícios da história em quadrinhos para a educação, em particular no ensino fundamental e na alfabetização, são oficialmente reconhecidos. As HQs fazem parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), que possibilita a professores e alunos o acesso a obras distribuídas em escolas públicas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) também incentivam o uso de quadrinhos e indicam que nas bibliotecas é necessário que estejam à disposição dos alunos textos dos mais variados gêneros (livros de contos, romances, jornais, quadrinhos, entre outros). O PCN lista ainda a HQ como um gênero adequado para o trabalho com a linguagem escrita.

"Alguns professores olham para a HQ e veem algo distante. Assim não têm entusiasmo, não conseguem comentar sobre aquilo com os alunos", acredita José Felipe da Silva, professor de Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – a disciplina é oferecida a diversos cursos de graduação na Universidade. Ex-professor do ensino fundamental e colecionador de HQs, Felipe da Silva afirma que os quadrinhos foram um impulso para ele mesmo se alfabetizar quando criança. Na escola em que dava aula, na rede municipal de Natal, costumava fazer exposições com revistas e bonecos dos personagens das HQs para atrair a atenção dos alunos.

Imaginação e fantasia
Luciana Begatini Silvério, professora de pós-graduação na área de educação, lembra ainda que o PCN pede que o leitor seja formado como alguém capaz de ler, compreender e interagir com a leitura – entendida não só por meio de palavras e frases, mas, também, por diferentes tipos de linguagem. Com os quadrinhos, a criança em fase de alfabetização que ainda não domina a leitura e a escrita do alfabeto consegue fazer uma leitura competente com o recurso das imagens. "Além disso, a criança precisa muito ser formada no concreto. E nas HQs, os recursos de imagens, expressões dos personagens, letras, metáforas visuais ajudam a ter maior compreensão do que ela está lendo", afirma.


Entre os elementos que se reconhecem como mais atrativos para as crianças nas histórias em quadrinhos estão aspectos lúdicos, como cores, onomatopeias, personagens e traços. Na dissertação de mestrado de Luciana Begatini Silvério, defendida em 2012 – orientada por Lucinea Rezende, na UEL –, ela fez uma pesquisa de campo com professores e alunos da rede municipal da cidade Primeiro de Maio, no Paraná. A pesquisa não foi feita com alunos em alfabetização e, sim, com estudantes do segundo ciclo do EF. Dos 58 alunos participantes, 30 listaram as HQs entre seus gêneros de leitura preferidos. E três, apenas, afirmaram não gostar de HQs (dois deles alegaram que os quadrinhos são para serem lidos em casa).

Luciana Novello, professora do 1o ano do EF no Colégio Ofélia Fonseca, em São Paulo, destaca justamente o caráter lúdico como um dos elementos de atratividade dos quadrinhos. "As histórias em geral são divertidas, somadas ao colorido das imagens. E temos gibis com histórias bem curtas, de uma página, e para a criança ler fica uma leitura mais prazerosa", diz. Além disso, a professora afirma que, entre seus alunos, o gibi já faz parte do cotidiano fora da escola: por isso, a familiaridade com os personagens por si só já desperta o interesse das crianças.

Os quadrinhos podem, ainda, ser trabalhados com as crianças em idade de alfabetização em relação com o brincar – como, por exemplo, uma forma de trabalhar a imaginação, o "faz de conta". "Alguns quadrinhos fazem parte da literatura infantil, e a literatura infantil se alia à brincadeira justamente através do simbólico, da fantasia. Quando você permite que atuem a imaginação e a fantasia da criança é possível que isso faça parte das atividades lúdicas", diz Maria Angela Barbato Carneiro.

Corrigindo a Mônica
Professor da Escola Polo Municipal Venita Ribeiro Marques, em Aral Moreira (MS), Gilson Matoso considera a HQ uma das melhores maneiras para chamar a atenção das crianças. Pós-graduado em Mídias na Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ele costuma aliar o trabalho com os quadrinhos a datas especiais – como as festas juninas. E, no segundo ano do EF, trabalha também a gramática. Personagens conhecidos das HQs da Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa, o Cebolinha troca o "R" pelo "L" e o Chico Bento tem o registro da sua fala acaipirada, com erros ortográficos. "Fazemos exercícios em que corrigimos algumas palavras dos personagens, passando para a norma culta", diz Matoso.


Antes de o aluno desenvolver a leitura das palavras e dos desenhos em si – como personagens e cenários – há outros elementos típicos das HQs que as crianças aprendem a ler e a interpretar. "O texto está ali, não podemos ignorá-lo, mas mesmo que as palavras escritas sejam estranhas para o aluno, ele vai fazer a leitura visual­ da narrativa e vai entender que aquilo pode ser uma fala, um grito", diz José Felipe da Silva.

A leitura do texto em si é facilitada ainda por conta do tipo de letra normalmente grafada dentro dos balões, que é a letra em bastão. Como na maior parte das escolas, a professora Luciana Novello explica que no Colégio Ofélia Fonseca a letra bastão é usada desde o ensino infantil até o primeiro ano, quando é introduzida então a letra cursiva, entre o final do primeiro ano e o segundo ano do EF.

Lucinea Rezende, da UEL, afirma que é importante ainda ter como premissa o tratamento da leitura como algo a ser construído continuamente. Ela ressalta que isso é válido não somente na alfabetização e no ensino fundamental, mas até mesmo na universidade. "Alguns estudantes gostam de ler, outros, não – ou porque não puderam ou porque não se interessaram suficientemente. Nesse caso, a gente precisa usar todos os recursos possíveis: se a criança já lê HQ, o que a escola pode fazer para a criança ler melhor, explorar outras possibilidades?", questiona. A professora e pesquisadora defende que a escola deve trabalhar, sempre, com uma boa multiplicidade de textos, incluindo as HQs.

Além disso, Lucinea lembra que os alunos acabam desenvolvendo gostos por diferentes tipos de leitura. Por isso, a escola precisa se apropriar de todos os recursos possíveis. "Precisamos pensar ainda o que o professor está almejando quando trabalha a leitura. Quanto à HQ, por exemplo, o que se consegue ver nesse gênero literário? Pensamos na palavra, na imagem, nos personagens?". A reflexão sobre os materiais usados pelos educadores deve levar em conta, afirma Lucinea, não somente questões da linguagem, mas também, de fundo social das narrativas. "É a partir dessa compreensão que se devem usar as HQs na alfabetização. Alfabetizar é trazer para o mundo da escrita, dos números, para que o aluno possa dialogar e interagir com o mundo", explica.

Produção do texto
Com as HQs pode-se ainda propor a construção de histórias. "Para a produção de texto os alunos em geral gostam muito dos quadrinhos, por conta do desenho. É uma boa ferramenta para a sequência didática, em que é preciso ter um resultado final da produção deles", diz Gilson Matoso.


Além de desenhar, pode-se tra­balhar com o texto produzido sobre histórias já feitas, com os ba­lões em branco. "Nesse caso o objetivo não é pensar em inventar a história, mas na escrita, na língua", diz Luciana Novello, do Ofélia Fonseca. "No 1o ano, a principal ideia do uso do gibi é a aquisição de leitura e escrita. E, eventualmente, um trabalho com arte e ilustrações", completa.

A professora afirma que os gibis são trabalhados em aula como um gênero textual. Em momentos de leitura planejada, cada aluno escolhe um exemplar para ler – seja ela leitura convencional (fluente) ou não. "Também se lê em dupla, um leitor mais fluente com outro menos fluente", explica.

Gêneros e interdisciplinaridade
O quadrinho é um gênero em si mesmo, mas, dentro dele, há subgêneros – como romances adaptados e até reportagens em forma de HQ, o que se torna uma vantagem para apresentar outros gêneros de narrativa. "Claro que é preferível ampliar a leitura dos gêneros para outros textos, não somente os quadrinhos. Mas é importante que o professor apresente uma diversidade de gêneros de HQ", diz José Felipe da Silva, da UFRN.

Além dos gêneros, as diferentes temáticas dos quadrinhos também são um elemento importante em sala de aula – e podem ser trabalhadas tanto com crianças em idade de alfabetização quanto com as maiores. "O foco de minha pesquisa foi buscar a interface entre HQ e a literatura, mas há outros aspectos transversais também, como noções de higiene, temas culturais e históricos", diz Luciana Begatini Silvério.

Se na alfabetização os quadrinhos podem atrair a atenção das crianças para ler e escrever, nessa mesma fase as HQs podem servir como suporte ou tema para desenvolver outras habilidades – como adivinhas. "Existem também várias atividades que podem ser feitas com a linguagem dos quadrinhos, como noções abstratas de química. Pensamos no Asterix e na sua poção mágica, por exemplo, à qual podemos relacionar uma receita – um suco de laranja – e fazer essa brincadeira", diz Maria Angela Barbato Carneiro, da PUC-SP.

Acesso à alimentação é uma questão de direito humano, e não só de política pública

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Sociedade
14/5/2014 - 12h45

Acesso à alimentação é uma questão de direito humano, e não só de política pública


por Luciano Gallas e Patrícia Fachin, para o IHU On-Line
alimentacao saudavel 300x225 Acesso à alimentação é uma questão de direito humano, e não só de política pública

"Os órgãos de Estado ainda tendem a fazer uma diferenciação, de modo que os direitos civis e políticos acabem tendo, na prática, uma maior exigibilidade do que os direitos sociais", pontua o Procurador Regional da República do Rio Grande do Sul Paulo Leivas.
O arcabouço legal que garante o acesso à alimentação adequada já existe e é garantido pela Constituição Federal brasileira. Contudo, o Brasil precisa de "instrumentos mais claros e específicos para a exigibilidade desse direito", avalia Paulo Leivas em entrevista concedida à IHU On-Line pessoalmente. A preocupação está relacionada com o fato de que as pessoas não sabem a que órgãos recorrer quando se encontram em uma situação de insegurança alimentar ou de violação do direito à alimentação. Segundo ele, "existem órgãos que protegem os direitos humanos em geral, como o próprio Ministério Público, órgãos de Direitos Humanos em âmbito federal e estadual, mas são órgãos gerais. Talvez o que esteja faltando é um órgão específico para a proteção e a realização do direito à alimentação em cada esfera de governo: na esfera federal, nas esferas estaduais e nas esferas municipais".

Ações como essa, entretanto, demandam que as autoridades assumam e reconheçam "que a alimentação é um direito humano, não é uma questão só de política pública; isso significa que, se as pessoas não têm acesso à alimentação, um direito está sendo violado", acentua.

Para Leivas, o debate democrático perpassa a resolução de questões como a fome e o acesso à alimentação. "Não é possível existir uma verdadeira democracia se existem pessoas que não têm acesso a uma alimentação adequada ou vivem em uma situação de miséria. Esse tipo de situação é incongruente, é incompatível com uma democracia", frisa.

Paulo Leivas é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre e doutor em Direito pela mesma instituição. Atualmente leciona no Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIRITTER e é membro do Ministério Público Federal, onde exerce o cargo de Procurador Regional da República, com atuação na 4ª Região. Também é coordenador do Núcleo de Apoio Operacional (NAOP) da 4ª Região da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

Paulo 300x236 Acesso à alimentação é uma questão de direito humano, e não só de política pública
Confira a entrevista:

IHU On-Line – O Brasil dispõe de um suficiente aparato legal para a garantia do direito a uma alimentação adequada e nutritiva?
Paulo Leivas - Sim, a resposta é afirmativa. O Brasil possui diversos instrumentos normativos que garantem o direito à alimentação adequada, tanto porque o Brasil é signatário e incorporou, ao Direito brasileiro, Tratados Internacionais de Direitos Humanos que dispõem sobre o direito à alimentação, como também porque o Brasil reconhece na legislação interna esse direito, por meio de uma lei específica chamada Lei da Segurança Alimentar. Em nível constitucional, no ano de 2010 o Direito Humano à Alimentação foi acrescentado ao hall dos direitos sociais e direitos fundamentais sociais.

IHU On-Line – O senhor citou a Lei de Segurança Alimentar. Quais são, além desta lei, os principais documentos legais que respaldam o acesso a direitos sociais como a saúde e a alimentação?
Paulo Leivas – No caso da saúde existem muitos instrumentos legais e muitas leis que garantem esse direito; a Lei Orgânica da Saúde é a principal. No caso da alimentação, o principal instrumento legal é a Lei de Segurança Alimentar em nível nacional, além das leis específicas estaduais de Segurança Alimentar. O principal instrumento é a Constituição Federal, que incorpora e fala expressamente em direito humano e direito à alimentação.

IHU On-Line – Esse arcabouço legal é suficiente para a garantia do acesso à alimentação adequada?
Paulo Leivas – Existe um arcabouço legal, mas o que precisamos no Brasil são instrumentos mais claros e específicos para a exigibilidade desse direito. Por exemplo, um grupo de indivíduos que se encontra em uma situação de violação do Direto à Alimentação ou de insegurança alimentar, recorre a quem? Que órgãos esse grupo acessa para reivindicar e demandar esse direito? Existem órgãos que protegem os direitos humanos em geral, como o próprio Ministério Público, órgãos de Direitos Humanos em âmbito federal e estadual, mas são órgãos gerais. Talvez o que esteja faltando é um órgão específico para a proteção e a realização do direito à alimentação em cada esfera de governo: na esfera federal, nas esferas estaduais e nas esferas municipais. Para isso, os governantes, as autoridades precisam assumir ou reconhecer que a alimentação é um direito humano, não é uma questão só de política pública; isso significa que, se as pessoas não têm acesso à alimentação, um direito está sendo violado.

IHU On-Line – Esse modelo de uma instituição que atuaria principalmente na questão do direito à alimentação já existe? Há alguma experiência nesse sentido no Brasil ou em termos mundiais?
Paulo Leivas – Não sei se a criação de um órgão específico seja a melhor solução. Talvez uma possibilidade seja a de os órgãos de proteção aos direitos humanos assumirem o papel de trabalhar com direitos humanos.
Existe uma questão cultural de que direitos humanos são tão somente os direitos civis e políticos, os direitos de liberdade, direito de não ser discriminado; esses são os temas com os quais os órgãos de direitos humanos em geral trabalham. Talvez, os órgãos de direitos humanos precisam assumir e reconhecer que os direitos sociais e, principalmente, o direito à alimentação também é um direito humano, e possam, então, trabalhar na visibilidade desses direitos.

IHU On-Line – Você citou os direitos civis. A legislação brasileira faz distinção entre direitos humanos, direitos fundamentais e direitos sociais?
Paulo Leivas – Explicitamente, não faz. O principal instrumento normativo que temos é a Constituição Federal de 1988. Embora ela trate dos direitos sociais em um artigo separado dos direitos civis e dos direitos políticos, em nenhum momento é possível encontrar na Constituição qualquer tratamento diferenciado entre tais direitos. Mas de que forma esses direitos são trabalhados na prática é outra história, porque os governos, os órgãos de Estado ainda tendem a fazer essa diferenciação, de modo que os direitos civis e políticos acabem tendo, na prática, uma maior exigibilidade do que os direitos sociais.

IHU On-Line – De que forma o direito a uma alimentação adequada está relacionado com a democracia?
Paulo Leivas – Não é possível existir uma verdadeira democracia se existem pessoas que não têm acesso a uma alimentação adequada ou vivem em uma situação de miséria. Esse tipo de situação é incongruente, é incompatível com uma democracia. Por isso, o conceito de democracia material não é uma questão só de garantia e de participação política. Ele implica em condições ou — usando a palavra de Amartya Sen [1] — na capacidade de exercício dessa democracia, e isso pressupõe cidadãos com acesso à alimentação adequada.

NOTA:
[1] Amartya Sen (1933): economista indiano. Foi laureado com o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel de 1998, pelas suas contribuições à teoria da decisão social e do "welfare state". Sua maior contribuição é mostrar que o desenvolvimento de um país está essencialmente ligado às oportunidades que ele oferece à população de fazer escolhas e exercer sua cidadania. E isso inclui não apenas a garantia dos direitos sociais básicos, como saúde e educação, mas também segurança, liberdade, habitação e cultura.
* Colaborou: Suélen Farias.
**Publicado originalmente no site IHU On-Line.

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Sociedade
14/5/2014 - 10h54

por Martin Denoun e Geoffroy Valadon*
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Espalham-se pelo mundo serviços de compartilhamento de casas, quartos, carros, outros objetos. Novo modelo de negócio? Ou sinais de pós-capitalismo?

"Na casa de cada um de nós existe um problema ambiental com potencial econômico. Temos vários objetos que não utilizamos: uma furadeira dormindo no armário que não será usada por mais de 13 minutos, em média, durante toda a vida; um DVD já sem uso ocupando espaço, a câmera que atrai mais poeira que luz, mas também o carro que usamos solitariamente menos de uma hora por dia ou o apartamento vazio durante todo o verão. A lista é longa. E representa uma quantidade impressionante de dinheiro, assim como de lixo futuro."

Este é, essencialmente, o argumento de teóricos do consumo colaborativo. Pois, como sustenta com um grande sorriso Rachel Botsman (1), uma de suas lideranças, "você precisa do buraco, não da broca; da projeção, não do DVD; da viagem, não do carro!"…
Jeremy Rifkin foi quem diagnosticou a transição de uma era da propriedade para uma "era do acesso" (2), na qual a dimensão simbólica dos objetos diminui em benefício de sua dimensão funcional: um carro costumava ser elemento de status que justificava sua compra para além do uso, enquanto agora os consumidores começam a alugar o seu veículo.

Hoje, os jovens propõem alugar seus próprios carros ou casas. Se isso causa desespero a muitos empresários de transportes ou hotelaria, outros veem com esperança esse desapego com relação aos objetos de consumo. Plataformas de troca possibilitam uma melhor alocação de recursos; elas atomizam a oferta, eliminam intermediários e facilitam a reciclagem. Ao fazer isso, corroem monopólios, provocam redução de preços e trazem novos recursos aos consumidores. Estes serão levados a comprar bens de qualidade, mais duráveis, incentivando a indústria a abandonar a obsolescência programada. Seduzido por menores preços e pela conveniência dessas relações pessoa-a-pessoa (P2P, peer to peer), eles contribuem para a redução de resíduos. A imprensa internacional, do New York Times ao Le Monde, passando pelo Economist, já fala em "revolução do consumo."

Um passe de mágica
Os partidários do consumo colaborativo estão frequentemente entre os desiludidos com o "desenvolvimento sustentável". Contudo, embora reprovem a superficialidade deste conceito, não costumam criticá-lo mais acidamente. Citando especialmente Rifkin, nunca evocam a ecologia política. Mencionam de bom grado Mohandas Gandhi: "Há atualmente na Terra recursos suficientes para atender às necessidades de todos, mas eles não serão jamais suficientes para satisfazer os desejos de posse de alguns (3)." Isso não os impede de manifestar uma espécie de desdém com relação aos adeptos do decrescimento e ativistas ambientais em geral, percebidos como utopistas marginais e sobrepolitizados.
"Foi em 2008 que batemos contra a parede. Juntos, a Mãe Natureza e o mercado disseram 'basta'. Bem sabemos que uma economia baseada no hiperconsumo é um esquema Ponzi (4), um castelo de cartas", argumentou Botsman numa conferência TED (Tecnologia, Entretenimento e Design) (5).

De acordo com ela a crise, ao fazer com que as pessoas se esforçassem para sobreviver, teria causado uma explosão de criatividade e confiança mútua que supostamente detonou o fenômeno do consumo colaborativo (6).

Mais e mais sites propõem a troca ou aluguel de bens "adormecidos" e caros: máquina de lavar roupa, roupas de marca, objetos high-tech, equipamento de camping, mas também meios de transporte (carro, moto, barco) ou espaços físicos (adega, estacionamento, sala etc). O movimento chega a ser quase uma poupança: ao invés de deixá-la inerte numa conta, as pessoas a compartilham, escapando dos bancos (7).

Na área de transportes, o uso compartilhado de automóveis consiste em dividir o custo de um trajeto; uma espécie de carona organizada e contributiva, que permite, por exemplo, viajar de Lyon a Paris por 30 euros, contra 60 euros da passagem de trem, e conhecer pessoas novas durante o trajeto. Diversos sites que propõem esse serviço surgiram na França nos anos 2000. Isso levou à evolução típica das startups da internet: uma luta para estabelecer-se como referência de gratuidade, para, uma vez alcançada essa posição, impor aos usuários uma comissão de 12% "para maior segurança". O número um francês, Covoiturage.fr, transformou-se em BlaBlaCar para embarcar na conquista do mercado europeu, e seu equivalente alemão, Carpooling, chegou à França. Enquanto os co-usuários habituais, enfurecidos pelo escorregão mercantil do site francês, lançaram a plataforma colaborativa e gratuita Covoiturage-libre.fr [algo como "Coautomóvel-livre"].

A partilha de carros reflete também um avanço cultural e ecológico. Plataformas como Drivy possibilitam a locação de veículos entre indivíduos, muito embora os atores dominantes do mercado sejam ainda empresas flexibilizadas (aluguel por minuto e self-service), que têm sua própria frota. A redução anunciada no número de veículos é relativa, portanto. Mesmo a frota Autolib', criada pela prefeitura de Paris com o grupo Bolloré e inspirada no Vélib' [para compartilhamento de bicicletas], substitui transporte, mais do que elimina carros (8).

No que diz respeito à hotelaria, a internet também favoreceu o impulso das trocas entre particulares. Vários sites (9) permitem contatar uma multidão de anfitriões dispostos a receber pessoas em suas casas por algumas noites, gratuitamente – e isso em quase todos os países. Mas o fenômeno do momento é o "bed and breakfast" informal e cidadão e seu líder indiscutível, Airbnb. Ele permite passar a noite em Atenas ou Marselha e vai mimá-lo com um generoso café da manhã "opcional" por um preço inferior ao de um hotel. Um quarto vazio em sua casa ou mesmo seu próprio apartamento, quando sair de férias, pode tornar-se uma fonte de renda. Em poucas palavras: "Airbnb: viaje como ser humano". Na imprensa econômica, contudo, o serviço mostra uma outra face. Ele orgulha-se de capturar mais de 10% do valor pago ao anfitrião, e ver o volume de negócios, de US$ 180 milhões em 2012, aumentar tão rápido quanto a capitalização na Bolsa, de quase US$ 2 bilhões.
compartilhamento2 Possuir ou Partilhar?
Em cartum, o duplo sentido da nova tendência…

"A riqueza está mais no uso que na posse – Aristóteles", proclama a empresa de uso compartilhado de carros City Car Club. Mas, visto mais de perto, o desapego da posse diagnosticado por Rifkin não parece incluir o desapego do consumo: se no passado o sonho era possuir uma Ferrari, o de hoje é dirigir uma. E, se as vendas diminuem, aumentam os aluguéis. Esta "era do acesso" revela uma mutação das formas de consumo ligada a uma mudança logística: a circulação de bens e habilidades pessoais por meio de interfaces eficientes da web. Longe de assustar-se, as empresas veem nesta diluição um potencial de novas operações, nas quais elas serão os intermediários remunerados.

De um lado, isso possibilita aumentar a base de consumidores: quem não tinha meios para comprar um objeto caro pode agora alugá-lo. De outro, a comercialização estende-se à esfera doméstica e aos serviços entre particulares: o quarto de um amigo ou um assento no carro podem ser oferecidos para alugar, bem como uma mãozinha no encanamento ou no inglês. Podemos também antecipar o mesmo efeito do setor de energia, no qual a redução de gastos resultante de avanços tecnológicos leva ao aumento no consumo (10): a renda que uma pessoa ganha com o aluguel do seu projetor vai incentivá-la a gastar mais.
No entanto, existem novas práticas que irão reverter o consumismo. São muito diversas: os couchsurfers (literalmente, "surfistas de sofá") permitem que desconhecidos durmam gratuitamente em suas casas ou desfrutem de sua hospitalidade. Os usuários do Recupe.net ou do Freecycle.org preferem doar a jogar fora objetos que não têm mais utilidade. Nos sistemas locais de trocas (SEL, na sigla em francês), as pessoas oferecem suas competências em base igualitária: uma hora de jardinagem vale uma hora de encanamento ou design. Em associações para a manutenção de uma agricultura camponesa (AMAP, na sigla em francês), cada um assume o compromisso de abastecer-se por um ano com o mesmo agricultor local, com quem pode desenvolver um relacionamento, e participar voluntariamente da distribuição semanal de legumes. Esse compromisso relativamente obrigatório reflete uma abordagem que vai além da simples ação de consumo, que consiste em "escolher com a carteira".

Qual o ponto em comum entre esses projetos associativos e as empresas da distribuição C2C — de consumidor para consumidor? Comparemos os "surfistas de sofá" e os clientes do Airbnb: para os primeiros, o essencial reside no relacionamento com as pessoas, sendo o conforto secundário; para os segundos, é o inverso. Os critérios de avaliação são, portanto, sensivelmente diferentes: a atração do Airbnb, além do preço, está na limpeza do local e sua proximidade com o centro turístico, enquanto que no Couchsurfing.org, além da gratuidade, há a convivência com o anfitrião. Da mesma forma, plataformas tais como Taskrabbit.com oferecem troca de serviços entre particulares que pagam, enquanto que os SEL baseiam-se na doação.

Em textos destinados ao grande público, os promotores do consumo colaborativo citam frequentemente iniciativas associativas para vangloriar-se do aspecto "social" e "ecológico" dessa "revolução". Essas menções desaparecem quando falam na imprensa de negócios. Na verdade, só podemos juntar essas duas abordagens sob o mesmo rótulo, de "economia do compartilhamento", se levarmos em conta a forma dessas relações e minimizarmos as lógicas, muito diferentes, que as alimentam.

Essa combinação, que culmina no passe de mágica que consiste em traduzir compartilhar por alugar, é largamente encorajada por aqueles que procuram tirar vantagem do fenômeno. Por meio de um subterfúgio semelhante ao greenwashing ("lavagem verde de imagem"), projetos tipo AMAP são utilizados como garantia. Quem não leva em conta os valores sociais subjacentes a esses projetos participa, assim, de uma espécie de "lavagem colaborativa" (collaborative washing). As pessoas que oferecem seu teto, sua mesa ou seu tempo a desconhecidos geralmente se caracterizam, na verdade, pela busca de práticas igualitárias e ecológicas – o que as aproxima ainda mais de cooperativas de consumo e produção e de plataformas de troca C2C.

Essa dualidade coincide com muitas outras: a que separa o "desenvolvimento sustentável" da ecologia política, ou ainda o movimento do software de código aberto – que promove a colaboração de todos para melhorar o software – e o de software livre – que promove a liberdade dos usuários a partir de uma perspectiva política. A distinção feita por Richard Stallman, um dos pais do software livre, poderia ser estendida a cada um desses domínios: "O primeiro é uma metodologia de desenvolvimento; o segundo, um movimento social (11)".

*Animadores do coletivo La Rotative, www.larotative.org

Notas
(1) Cf. Rachel Botsman et Roo Rogers, What's Mine Is Yours: How Collaborative Consumption Is Changing the Way We Live, HarperCollins, Londres, 2011; Lisa Gansky, The Mesh: Why the Future of Business Is Sharing, Portfolio Penguin, New York, 2010. Na França, www.ouishare.net/fr; www.consocollaborative.com, por exemplo.
(2) Jeremy Rifkin, L'Age de l'accès. La nouvelle culture du capitalisme, La Découverte, coll. «Poche-Essais», Paris, 2005 (1re éd.: 2000).
(3) Citado em Anne-Sophie Novel e Stéphane Riot, Vive la corévolution! Pour une société collaborative, Alternatives, coll. «Manifestô», Paris, 2012.
(4) Esquema fraudulento, lançado em 1920 por Charles Ponzi, de remunerar os investidores através de solicitação constante de novos colaboradores. Ler Ibrahim Warde, «Ponzi, ou le secret des pyramides», Le Monde diplomatique, agosto 2009.
(5) «Rachel Botsman: à propos de la consommation collaborative», mai 2010, www.ted.com
(6) Ler Mona Chollet, «Yoga du rire et colliers de nouilles», Le Monde diplomatique, agosto 2009.
(7) Zopa, Prosper e Lending Club são as principais plataformas, nos Estados Unidos. Na França, uma outra associação para empréstimo, a FriendsClear, tem parceria com o Crédit Agricole.
(8) «"On a raté l'objectif. Autolib' ne supprime pas de voitures"», L'interconnexion n'est plus assurée, 26 mars 2013, http://transports.blog. lemonde.fr
(9) Couchsurfing.org, Hospitalityclub.org e Bewelcome.org, especialmente. Este último reúne os desapontamentos dos dois primeiros
(10) Ler Cédric Gossart, «Quand les technologies vertes poussent à la consommation», Le Monde diplomatique, julho 2010.
(11) Richard Stallman, «Pourquoi l'"open source" passe à côté du problème que soulève le logiciel libre», www.gnu.org
* Tradução: Inês Castilho.
** Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique francês e retirado do site Outras Palavras.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

PIB, conceito ultrapassado

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Economia
13/5/2014 - 11h24

por Ladislau Dowbor*

Indicador alternativo desafia ideia essencial ao capitalismo, ao sugerir que riqueza monetária não equivale a bem-estar. Novos critérios produzem resultados surpreendentes
A divulgação da pesquisa sobre Indicadores de Progresso Social 2014 (IPS) [leia o relatório principal, o resumo e a metodologia] vem agregar peso à transformação de como calculamos os resultados econômicos e o desenvolvimento. Sem ser economistas ou entender de contas nacionais, muitos já se perguntam há tempos como casam no Brasil os imensos avanços sociais e econômicos que vivemos, além um desemprego que é o menor da história, com taxas modestas de crescimento PIB, tão atacado como "pibinho". É que a cifra que tanto encanta a mídia, o PIB, simplesmente não mede o que queremos medir, que é o progresso, ou em todo caso o reflete de maneira muito parcial.

A iniciativa da ONG Social Progress Imperative é um refresco, ao medir o que importa, ao fazê-lo de maneira sistemática, com metodologia clara e que permite comparabilidade. Depois da edição experimental e limitada de 2013, a de 2014 cobre 132 países, com correções e ajustes. Publicada em dois volumes, um de resultados e análises por país, e outro de metodologia, a pesquisa constitui um aporte significativo para a compreensão das transformações que vivemos.

É verdade que esta iniciava vem apenas reforçar metodologias como o Happy Planet Index, o Genuine Savings Indicators, o FIB (Felicidade Interna Bruta) e sobretudo o movimento Beyond GDP na União Européia. Mas a contribuição de nomes como Michael Porter, da Universidade de Harvard e de outras instituições de peso, vai materializando a nossa lenta evolução para medidas que façam sentido. O apelo mundial para irmos além do PIB, lançado neste sentido há alguns anos por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, dos quais os autores do IPS se declaram devedores, está dando frutos.

O teórico da iniciativa, Patrick O'Sullivan, vai direto ao assunto: "É realmente indefensável continuar a usar o PIB como se de alguma forma medisse o bem estar, e é confortante se dar conta que o próprio Kuznets, o pai fundador da medição sistemática do PIB, já nos tenha alertado que "o bem-estar de uma nação dificilmente pode ser inferido da medida da renda nacional" (Met.26) Este ponto de partida define a filosofia do esforço empreendido.

"Tornou-se cada vez mais evidente que um modelo de desenvolvimento baseado apenas no desenvolvimento econômico é incompleto. Uma sociedade que deixa de assegurar as necessidades básicas, de equipar os cidadãos para que possam melhorar a sua qualidade de vida, que gera a erosão do meio ambiente, e limita as oportunidades dos seus cidadãos não é um caso de sucesso. O crescimento econômico sem progresso social resulta na falta de inclusão, descontentamento, e instabilidade social. Um modelo mais amplo e mais inclusivo de desenvolvimento requer novas medições, com as quais os que gerem as políticas e os cidadãos possam avaliar a performance nacional. Temos de ir além de simplesmente medir o Produto Interno Bruto per capita, e tornar a medição social e ambiental parte integrante de como medimos os resultados".(11)

Este enfoque permite organizar os indicadores em torno aos interesses reais das pessoas. O índice, no seu conjunto, busca responder a três questões: (26)
  1. O país assegura as necessidades mais essenciais da sua população?
  2. Os fundamentos básicos que permitam aos indivíduos e às comunidades alcançar e sustentar o seu bem estar estão assegurados?
  3. Há oportunidades para todos os indivíduos alcançarem os seus plenos potenciais?

Para nós no Brasil este enfoque menos centrado no crescimento econômico e diretamente dirigido ao bem estar da população é de uma grande ajuda. Em torno a estes três grandes eixos, o IPS apresenta indicadores básicos, quatro por eixo, que são por sua vez desdobrados em 54 indicadores mais detalhados. Conseguiram cifras razoavelmente confiáveis para 132 países, o que torna o IPS um complemento útil inclusive para o sistema básico das Nações Unidas, os Indicadores do Desenvolvimento Humano (IDH), que acrescenta aos dados tradicionais da renda indicadores de educação e de saúde.

Um outro elemento metodológico importante é que o IPS busca indicadores de resultados, não de insumos (outcome index, not inputs). Ou seja, um país que investe muito em saúde construindo hospitais de luxo e priorizando a saúde curativa, em termos de investimentos está realizando um grande esforço (inputs), mas os resultados (outcomes) serão pífios em termos de população saudável. E se trata de medir este último objetivo.(Met.5) A cidade de São Paulo gastou rios de dinheiro em viadutos, túneis, elevados e automóveis particulares com o resultado de paralisar a cidade. Esta paralisia, ao gerar mais custos para todos (inputs), aumenta o nosso PIB. Seguramente não o outcome queremos, que é a mobilidade urbana. Medir pelo enfoque dos resultados é muito importante.

Em termos metodológicos ainda, é natural que haja discussões sobre a objetividade na escolha dos indicadores. Patrick O'Sullivan (Universidade de Grenoble e de Varsóvia) apresenta aqui, no volume de Metodologia, um excelente artigo teórico sobre os indicadores e os seus limites. Os vieses são honestamente assumidos: "Vamos assumir abertamente que esta posição (do relatório) apoia-se em fundamentos que constituem certos juízos de valor normativos, que deixaremos explícitos e transparentes, e mostraremos, por mais chocante que este uso explícito de um discurso normativo possa parecer, a pesquisadores de ciências humanas orientados para o positivismo, que na realidade toda ciência humana é irremediavelmente carregada de valores de qualquer modo." (Met. 25)

No Brasil, este realismo quanto aos valores implícitos, apoiado nas visões de Gunnar Myrdal, nos ajudaria bastante, frente à deformação sistemática das análises sobre os avanços do país na mídia comercial. Mas este alerta deve ser observado inclusive para os dados do IPS: por exemplo, os dados relativos à propriedade privada são, neste relatório baseados na fonte da Heritage Foundation, um Think Tank da velha direita norte-americana, que seguramente consideraria a nosso Constituição, com a sua visão da função social da propriedade, como subversiva. O enfoque adotado, por exemplo, permite jogar para baixo o IPS da China, que é o país que de longe tirou mais pessoas da pobreza no planeta – cerca de dois terços da redução mundial. Aqui a carga de valores é realmente explícita.(106)

Os resultados da pesquisa
Na parte da análise dos resultados, uma das tendências mais interessantes mostra uma forte correlação entre o aumento do PIB e a melhoria na área das necessidades básicas, (no caso nutrição, água e saneamento, habitação e segurança) mas apenas para os mais pobres: "As necessidades humanas básicas melhoram rapidamente quando o PIB per capita aumenta, nos níveis baixos de renda, mas depois (a tendência) se torna mais horizontal (flattens out) à medida que a renda continua a aumentar". (54)

Para nós isto é muito importante, pois mostra que o aumento de renda nos extratos mais pobres melhora radicalmente o progresso social em geral. Em outros termos, o dinheiro que vai para a base da sociedade é muito mais produtivo em termos de resultados para a sociedade, o que bate plenamente com as pesquisas do IPEA sobre a produtividade dos recursos. As pesquisas da ONU sobre o IDH chegam à mesma conclusão: "Rendimentos mais elevados têm uma contribuição declinante para o desenvolvimento humano". O New Economics Foundation (NEF) de Londres chega à mesma conclusão, ao analisar o "retorno social sobre o investimento" (SROI – Social Return On Investment), e considera que a adoção desta metodologia "é particularmente oportuna quando as organizações estão buscando tornar cada libra render o máximo possível". (NEF, 2009) Estamos aqui no centro do problema da baixa produtividade econômica gerada pela concentração de renda, confirmando os efeitos multiplicadores que gera a redistribuição, inclusive para o próprio PIB.

Centrar-se no progresso social, ou seja, no resultado que queremos efetivamente para a nossa vida, e não no PIB, permite por sua vez evitar deformações flagrantes que o IDH atenua apenas em parte. Assim países exportadores de petróleo, como a Arábia Saudita, o Kuait e Angola, que pela exportação de recursos naturais aparecem com uma renda per capita elevada, mas não asseguram o bem estar que estes recursos deveriam gerar para a população, são aqui avaliados de maneira diferenciada, como under-performers, ou seja, países com um crescimento distorcido. Por outro lado, constata-se a alta correlação entre o PIB e o indicador de acesso à informação e comunicação, "amplamente baseado no fato que o acesso à telefonia móvel e à internet está ligada à capacidade aquisitiva do consumidor".(59)

Para nós esta dimensão é importante para pensar e contabilizar a contribuição das exportações primárias: qual é a sua produtividade social real, em termos de geração de empregos, de impactos ambientais, de retenção ou expulsão de mão de obra para as cidades como por exemplo no caso da pecuária extensiva? A visão geral do relatório é que "de modo geral, países ricos em recursos têm mais propensão a ter uma baixa performance em termos de progresso social, relativamente ao seu PIB per capita".(53)
Na análise igualmente, o texto apresenta uma forte correlação entre os indicadores IPS e outras pesquisas baseadas em avaliações de percepção de qualidade de vida pelas pessoas: "Há uma relação altamente positiva e significativa entre a satisfação com a vida e o progresso social, e em particular na dimensão de Oportunidades." (69) Outro dado significativo é que "o indicador de sustentabilidade ambiental é o que menos está relacionado com o PIB." Os indicadores médios indicam uma forma de "U", sugerindo que os pobres ainda não afetam o meio ambiente, enquanto os países na fase média de avanço econômico tendem a deteriorá-lo, passando a buscar a sua recuperação ao alcançar níveis de renda mais elevados. (59)

O Brasil na pesquisa
O Brasil aparece bem na foto. Importante lembrar que se trata apenas de uma foto, pois o índice é novo e não permite comparação no tempo, ou seja, a dinâmica da mudança. De qualquer forma, vale a pena dar uma olhada nos dados.

O Brasil ocupa o 46º lugar entre 132 países, com um índice médio geral de 69,957. A Colômbia ocupa o 52º lugar, México 54º. O PIB per capita brasileiro utilizado na pesquisa é de 10.264 dólares em valores de 2012. Os dados sintéticos para o Brasil são os seguintes:
tabela PIB, conceito ultrapassado

tabela2 PIB, conceito ultrapassado

Para ter uma referência, os Estados Unidos ocupam o 16º lugar, com um PIB de 45.336 dólares, e um índice médio geral de 82,77. Os dados sintéticos norte-americanos são muito desiguais, com respectivamente 89,82 para necessidades básicas, 75,96 para fundamentos de bem estar (praticamente iguais ao Brasil), fruto dos últimos trinta anos de neoliberalismo naquele país, e 85,54 em termos de oportunidades – índice puxado em particular pela expansão do acesso à educação superior, onde o Brasil é, pelo contrário, muito fraco. A Argentina, por sua vez, que ocupa o 42º lugar, tem um score geral de 70,59, um PIB per capita de 11.658 dólares, e apresenta no geral índices parecidos com os do Brasil. 

Detalhando um pouco para os 12 principais grupos de indicadores, temos a situação seguinte:
Impressionante os Estados Unidos, com um PIB quatro vezes e meia maior do que o Brasil, terem um indicador de saúde e de bem estar (esperança de vida, morte por doenças entre 30 e 70, taxas de obesidade, mortes por poluição do ar, taxa de suicídios) significativamente pior do que o Brasil. Situação pior ainda em sustentabilidade, devido em particular à massa de emissões de gazes de efeito de estufa, uso da água além das reservas e redução de biodiversidade e habitat natural. A Argentina, aliás, fica pior ainda neste quesito. Os itens críticos para o Brasil, naturalmente, são os de segurança, com 37,50 pontos, e de acesso à educação superior, com 38,09 pontos.

Na análise dos autores, "entre os países dos BRICS, o Brasil apresenta o perfil de progresso social mais forte e mais "equilibrado" (the strongest and most "balanced"). Apresenta alguma fraqueza em Necessidades Humanas Básicas (puxada pelo score muito baixo de 37,50 para Segurança Pessoal), mas apresenta uma performance consistentemente boa em todos os componentes tanto dos Fundamentos de Bem Estar como de Oportunidades, com exceção de Educação Superior (38,09, 76º)."(50)

Comparando com o conjunto dos BRICS, o relatório considera que "quatro dos cinco BRICS fazem parte do quarto nível, inclusive Brasil (46º) com um score de 69,97, África do Sul (69º) com 62,96, Rússia (80º) com 60,79, e China (90º) com 58,67. A Índia fica fora dos 100 primeiros em termos de progresso social, com um score mal superando 50. Os países da América latina estão bem representados no quarto grupo. Argentina 42º, Brasil 46º, e Colômbia, México e Peru colocados nos lugares 52º, 54º e 55º respectivamente".(45)

No plano propositivo, ao comentar o Brasil, a análise sugere que "apesar do Brasil apresentar uma performance relativamente boa no componente Sustentabilidade do Ecossistema, precisa enfrentar questões ambientais urgentes, tais como a redução do desmatamento essencialmente frutos da especulação sobre o solo, da pecuária irregular, e de projetos de infraestruturas; o controle dos gases das emissões de gases de efeito estufa pelo setor industrial; e o acesso à eletricidade com tecnologias eficientes em termos de custos e ambientalmente amigáveis. |O Brasil tem cerca de um terço das florestas tropicais do planeta e pelo menos 20 por cento da biodiversidade do planeta. 

#Progresso Social Brasil tem focado os seus esforços iniciais na região amazônica."(36)
Os dados completos por país estão nas páginas 85 e seguintes do relatório principal. Vejam a tabela geral dos indicadores utilizados, disponível na p. 28 do relatório principal aqui.

Notas: No texto acima, colocamos entre parênteses as páginas do relatório principal, e quando se trata do volume sobre metodologia, colocamos o número da página com a menção "Met." Os links dos documentos originais estão abaixo. Para se documentar quanto às novas metodologias veja no blog http://dowbor.org o artigo O Debate sobre o PIB.
NEF – New Economic Foundation, "Social Return on Investment" http://www.neweconomics.org/blog/entry/a-turning-point-for-new-indicators-of-progress 

* Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org.
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.

As 10 principais características do gestor público moderno

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Segundo o professor Paulo Vicente Alves, do programa Fronteiras em Gestão Pública da Fundação Dom Cabral, existem ainda cinco tipos de liderança na gestão pública: técnica, carismática, democrática, autoritária e situacional

Redação, www.administradores.com, 12 de maio de 2014, às 16h06
Thinkstock

Uma característica vital é delegar poder à equipe
O líder é fundamental para uma gestão pública moderna e eficiente. É ele quem conduz a equipe para o alcance dos resultados esperados por sociedade e governos. Quais devem ser as características deste líder para que consiga entregar resultados com eficiência?
Segundo o professor Paulo Vicente Alves, do programa Fronteiras em Gestão Pública da Fundação Dom Cabral, existem cinco tipos de liderança na gestão pública: técnica, carismática, democrática, autoritária e situacional. "O ideal é o líder possuir características comuns a todos esses tipos de liderança, como a credibilidade técnica, o carisma, o gosto pelo diálogo com a equipe e a atitude decisória quando se fizer necessária", destaca.


Técnica

Gestor de perfil técnico, com profundo conhecimento da área em que atua. É pragmático.

Carismática

Admirado pelo carisma, pela capacidade de estabelecer conexões com as pessoas da equipe e motivá-las por resultados.

Democrática

Gosto pelo consenso, pelo diálogo com a equipe para fundamentar as decisões. É colaborativo.

Autoritária

                                                        Centralizador, geralmente enérgico, concentra em si todo o poder e atua verticalmente, sob forte hierarquia. Só ele decide.

Situacional

Possui as características comuns a todos os tipos de liderança, empregando-as conforme a necessidade e o ambiente de trabalho em que está.

Outra característica vital é delegar poder à equipe. "Há o mito do super-herói no setor público, aquele que acumula as decisões, que é a referência para os demais, porém o gestor público moderno precisa horizontalizar o trabalho e dar mais poder à equipe, motivando-a e ao mesmo tempo cobrando resultados", explica Paulo Vicente.

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Ser líder do setor público requer ainda serenidade para lidar com as pressões de prazo (entrega de relatórios, editais, licenças etc) e possíveis situações de crise, avaliando cenários e tomando as decisões com o suporte da equipe. "A atitude decisória é dele, ainda mais em situações extremas, quando mais se precisa do líder", diz Alves. A organização no trabalho e o foco constante nos resultados são outras qualidades imprescindíveis para o gestor público. "O caráter nacionalista pode ser uma ferramenta útil para o gestor conscientizar a equipe sobre a importância daquele trabalho para o país, porém não deve ser exagerado sob pena de cair no lugar comum e acabar gerando antipatia", conclui o professor.


Credibilidade técnica

Carismático

Motivador

Gosto pelo diálogo

Atitude decisória

Empoderamento ("delegar")

Serenidade em situações extremas

Organização

Foco em resultados

Caráter nacionalista (sem exageros)